sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Procrastinação matrimonial

Em 1980 lavava louças, lavava o piso, lavava a cara e deixava tudo pronto. E esperava um pouco, pois também lavara a roupa que estendera no varal que, posteriormente vago, lhe serviria para fins mais sórdidos. Tirou de lá a calça preta e a camisa azul escuro de botões mais claros, ambas muito sociais pouco sociáveis - coisa de ocasiões festivas em geral. Passou ambas de improviso na mesa da cozinha com a aparente calma e economia de sempre, mas parecia, pa, que o ferro fervilhava era de dentro. Vestiu ambas, estava nu até agora - às vezes sentia mesmo que podia andar pelado em casa. Entre a dourada e a roxa, escolheu a última toalha para depor sobre a mesa. E não esquecera de considerar: Habitava uma cidade fria, cinza, industrial em uma ilha x do Atlântico. Maquiavelicamente propensa a esfolar a joie de vivre de seus pobres urbanos. O roxo ficaria bem melhor em p&b. Abriu uma breve garrafa de whiskey na TV passava um filme querido, mas daqueles ardidos que emperram o malte ao fazerem piada de graça de um canceriano sem lar. Breve garrafa maltada. Maldita, sempre pede mais uma quando não é a hora. E é agora! Iggy na vitrola, subiu as escadas para dançar de olhos maquiados no espelho. Descamisado, desempregado na Cidade Indústria por excelência - o que diz muita coisa. Sobre tu, não sobre ele que, sóbrio, continuava na dança (e)vocação xamânica. E o espelho parecia contente, e se via em seu ídolo; Mas seu ídolo morrera há meses; Sua banda cover definhara há dias e enxotara sua namorada de cas' há segundos. E ídolo rindo como nunca em vida. Não quebraria o espelho: Azar e falta de respeito! Bad carma. Vestiu novamente a camisa, desceu as escadas, virou o disco. Sacudiu a garrafa pra sentir mais umas gotas do néctar da vida e a jogou na lixeira reciclável. Garrafa e vida. E como o ídolo que dera cabo em sua própria morte, would give him(self) enough rope. Disciplina de escoteiro é liberdade, nó de marinheiro fortalece, sobe varal, trepa na máquina e... Campainha!

Era 1994 e era entrega dos correios. Há uns vinte anos atrás a entrega causava frisson, mas no momento inoportuno eles causavam só pavor. Não atendeu! Seria a mais pura invasão sangue suga de sua privatecidade. Há uns dois meses atrás o seu pânico de telefone teve um pico, chute de bico, e agora o aparelho era bola disforme em algum canto da casa labiríntica. Não tava caso perdido, mas estava mesmo era distante de filha, mãe, pais? Sempre preocupados e impotente mente opressiva... Tanto que, a última vítima do voleio pisciano, telefônico, fora o sempre insistente empresário. Que num belo momento desistiu, pudera. Dois meses de recolhimento oportuno. Cidade fria, cinza e industrial, numa ilha maior, sitiada, à beira de um ataque de nervos à paz do Pacífico. Deu tempo de lavar louças, esquentar colher, lavar piso, tentar livrar a cara e fazer um som. A banda ia bem, obrigado, em algum outro canto do condado. Um ídolo, amigo e confidente tinha se matado e lá ia ele outra vez. Colher esquentada, uma última re feição. Arma carregada. Alguns últimos pedidos escritos. Ídolos e súditos satisfeitos. Outros não... Esquenta a colher. Lava a colher. E o maldito eletrecista.

Em 1995 o problema da casa era a umidade, dizia o eletrecista. O pai dizia que não e a sogra teimava que o mofo estava consumindo o papel de parede da casa recencomprada! A filha, desacostumada, só fazia chorar. E a mangueira ainda tava aberta quando se punha a encerar o carro novo com a melhor maquiagem disponível no mercado. Lavou a lataria, lavou o carpê, tão caro quanto a cara de todos (bônus e ônus do novo empresário). Sequer desligou a torneira e foi dar uma voltinha por aí. Uma banda! Abandonou o carro brilhante em meio a possantes rotos, enferrujados e teve vontade de consertar o mundo - aquela era parada de costume para pessoas em crise. Pra quem não diferencia abstenção de abstinência, as crises são todas iguais e alvo fácil de coitadismo... Sereno, plácido, a aparente calma de nunca, desceu do carro sem colheres muletas ou macacos. Farejou o precipício... A ponta dos pés esfarela a Terra - um borrão no horizonte; Ela! E brincam com o eco das vozes até o anoitecer para depois fugirem pra longe da narrativa/profundidade de campo, Atlântida. Romeu pulou ao encontro de Ju e vice voa mar adentro.

Em 1996 iniciaram-se as querelas judiciais envolvendo familiares, membros da banda e demais lesados. O carro foi encontrado e estava um brinco!

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