terça-feira, 30 de novembro de 2010

Coivara

Alergia ao shampoo. Alergia ao condicionador. Afagos alheios. Brotoejas assassinas. Mera descamação da pele oleosa (que se opunha à secura dos cabelos grossos e compridos). Percorreu com o pensamento a enciclopédia inteira que tinha dentro de si sobre as possíveis e horrendas doenças que pudessem permitir a sua tomada corporal através daquela simples coçadinha. O eufemismo diminutivo se fazia claro quando, não contente com o atrito de seu médio e indicador esquerdos, aquela pequena bolinha de pele inchada na parte de trás da cabeça (vermelha, só podia ser vermelha a filhadaputinha), pedia que fosse possuída carnalmente por suas unhas. Nem pensou duas vezes. Pensando depois, sequer pensou! Tem vontade que pega a gente de jeito e não tem Mercúrio ou Descartes que ajude nessas horas... Se pensasse, provavelmente tentaria refrear a pulsão - as unhas estavam imundas! Dia de inverno em casa, segundo dia sem lavar os cabelos, a oleosidade da pele do pelo se misturava com a resposta meio aquosa da derme que, convidativa, se abria para o novo amante. Parecia lubrificar no decorrer... Já era o milhonésimo orgasmo que seu risinho de olhos fechados denunciava às paredes da casa vazia. Escovou os dentes, enforcou o banho e foi se deitar.

Acordou e era ainda madrugada. Viu alguns pontinhos de sangue no lençol e concluiu que talvez tivesse exagerado nessa coisa meio luxuriosa que é se coçar. Como uma virgem... Arrependimento, dever cumprido, Amor, o que era aquilo? Passando uma das mãos na cabeça, também notou que a bolinha tinha aumentado um tanto. E como inchou! Tentou voltar pros sonhos, pra eros, mas urra! A coisainda lutava pela Vida, reagira ao toque e começava a latejar num alarde tamanho que, por certo, acordaria até o menos atento dos vizinhos. Não doía mas era, com toda a certeza, desconfortável pra caramba. A casquinha da ferida que se formou coçava demais, céus, como tinha pavor dessas casquinhas!!! Sempre quando estas pareciam oferecer a menor resistência, escalpelava a si próprio sem a menor dó. Não fazia muito sentido em termos de cicatrização, era, sim, algo mais próximo de certa obsessão estética: E se por um acaso afagassem seu cabelo naquela manhã???

Em questão de segundos viu a si mesmo arfando em meio a sangue, sangue, lençóis, travesseiros, sangue... e viu a si mesmo mesmo, assim como alguém que nos vê de fora da órbita de nossos olhos terrenos: Um rapaz, sentado no meio de uma cama de casal e um rio de hemácias brotando nascente.

Em um piscar de olhos ;O a parede de seu quarto que se fazia cada vez mais clara no quarto escuro, palco para uma hemorragia improvisada e plateia insone.

Tocou novamente a bolinha com unha e dente, e se viu monstruoso quando tateou o estrago que tinha feito ao seu redor; Uma cratera, um rombo federal no Tesouro, que julgava mão nenhuma ser capaz de esculpir (ironicamente, sem causar o menor dano aparente à esfera, régia em meio ao caos de osso, pele, cabelo e massa encefálica). Rijo, o novo corpo tomara um formato menos circular; Se ligava por fim a um bulbo que sumia cérebro adentro tal qual um clitóris em sinal de alerta.

A quebra do silêncio chocava y ecoa. Oa tordoa! Uma voz convidativa reverbera da cratera como lava de vulcão.

Se toque...

Ta(l)king on, assim prosearam até raiar o dia... Divergiram em alguns pontos mas se entenderam muito bem, de um modo geral. Ela entendia sua falta de perspectivas e, às vezes, também se sentia assim. Que perspectivas tinham de ser plantadas em outro solo de vez em quando, que calvice não é demérito... Que daquele jeito a nossa Árvore da Vida não iria dar frutos para matar a fome de tantos. Que daquele jeito não ia dar pé. E, por mais que Caridoso dividisse contentemente constantemente conquemquerquefosse o que tinha como seu, sabia há muito tempo que a raiz é mais embaixo.

Baixou a cabeça.

Brotou a semente da dúvida.

Sozinho em casa, já não era a primeira vez que refletia sobre como as suas pulsões destrutivas talvez pudessem encurtar alguns caminhos para o Bem geral da nação... Os tais males que vem pra bend! E achou sinceramente que, na atual peregrinação, já tinha pego tantos atalhos errôneos - que a road to nowhere já era sem volta. O pesado, charmoso e enigmático destino reservado aos suicidas... E também aproveitou pra decretar a própria culpa, que já fizera gente demais sofrer por suas meninices inconsequentes. Que aquela semente em sua cabeça não merecia nascer nesse mundo - para dar de comer a eleitos a troco de notas de papel, cadáveres celulose de amigas que se foram pr'outro lado.

Tiferet argumentava desesperadamente que tinha um plano em mente, que tudo podia dar certo. Pedia uma última chance.

Irredutível, o rapaz pegou o frasco de acetona - encharcou sua cabeça e, piromaníaco que sempre fora, lembrou alguém que falava que a vida era um fósforo.

Tacou fogo nos cabelos!

Vem se recuperando bem das queimaduras e da lobotomia de urgência a que fora submetido para a retirada de um tumor mui maligno (já do tamanho de uma semente).

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